domingo, 28 de novembro de 2010

Incandescente

Acordei porque sonhei com sua voz.
Mas, como pude sonhá-la se dela sequer me lembro?
Sem registros, sem delongas. Tínhamos apenas nosso beijo.
Demorado. Feito de gesto brusco e irrepetível.
Por causa dele, não existia voz. Não deixamos espaço para que ela se desse.
Entre nós dois, nenhum vácuo.
Ponteiro de distância à zero, e por isso, como falar?
De que terreno brotaria voz ou som, se, egoisticamente, não queríamos nada por perto que não essa junção fulminante que fazia desmanchar-se qualquer verbo importante: ser, parecer, aprovar, continuar, convencer, ganhar, aprofundar.
“Não minto”, falo. Era mesmo sua voz. Desenfreada, solta e viva como se precisasse dizer tudo naquele “tempo-de-sonho”, pois, outra oportunidade seria impossível. Tinhas um sonho para falar, não mais que isso.
Querias que lhe resgatasse dali. Daquele meio turbulento onde outras intensidades concorriam com sua fala, que já aqui, tornou-se quase desesperada. Estavas apresentando-se e pedias que o chamasse. Pedias por um convite.
Era um convite.
Desculpe. Demorei em entender. Como poderia eu saber que eras tu quem falavas?

Num pano de fundo xadrez, conseguia ver-te. Como espectadora que também corria contra o relógio e que ganhará a melindrosa e derradeira oportunidade de escolher um toque que coubesse naquele instante. Lembro-me que estavas atrás de um vidro de dimensões impensáveis. Por isso falava tanto. Por isso, querias que conhecesse sua voz. Para não esquece-lá mais. Para não perdê-la num depois, que já sabíamos, então, que não viria. Não iríamos conseguir dali escapar.
“Seus cabelos”, respondi fechando meus olhos à espera de que o instante não demorasse tanto. Não querias mais ficar ali.
Só a aflição falava comigo.
Anteparo de vidro. Extensão irremediável e plácida. Deixava passar sua voz que chegava à mim num volume absurdo, pois quanto mais alto o escutava, mais tremia, mais à fundo meu corpo era atingido, mais fortemente sentia o tempo apertando minhas veias, fazendo-se senhor de nós e rindo... gargalhada pouco amorfa, posto que certeira.
Vacilaria novamente feito presa fácil. Pus a última carta nas mãos do inimigo. Xeque-mate.

Caberia ainda meu toque. Isto era parte do trato e não me furtaria em cobrá-la. Pensando ser insuportável, encarei-o sem titubear. Chance última de respirar. Salvar a mim e a ti. Salvar a pele que era nossa, a mesma que queimava quando solta e faminta esparramada em nosso jogo onde nada mais poderia penetrar que não nossa pulsante vontade. Gritante como sua voz teimosa e que não conheceu rouquidão nem complascência.
“Ao que me cabe, tempo, resta-me ainda, o toque”. Sei que és firme, resoluto, impassível por excelência, porém, já ouvi que jamais fugirias ante um bom combate.
Intempestivo era como este no qual nos encontrávamos demonstrava ser.
Ludibriar não tinha consistência para ti e sabíamos, juntos, que este era jogo infinito. Perene e poliforme era dele que nós fazíamos vivos. Inescapável jogar.

Fresco e leve. Deixei que a mão escorregasse por teus cabelos e dali: novamente nós. Sem fresta alguma. Casulo febril e doce. Pude vê-lo pelas mãos. Sorri. Os sentidos todos compareciam e não éramos o encontro de dois: tornamo-nos contágio. Puro contágio. Sem origem ou destino, sem quaisquer nomeação. Éramos para além de nós. Éramos nesse ir, nessa saída: irrefreável e transbordante.
Desculpe pela demora. Sabia que virias. Talvez lá, do centro da cena, ou da escada à minha esquerda. Do corredor de paredes descascadas.
Marcamos um encontro há tempo, lembra-se? No Tempo do sonho.
Lá pude ouvir sua voz, sem me preocupar em reconhecê-lá. Num lugar nenhum no qual estávamos mais vivos que nunca.
No vazio do quarto, acordo-te com um beijo molhado e delicado.
Nos despedimos ali.