terça-feira, 7 de junho de 2011


Àquela Bê.


Éramos exatamente as mesmas.
mesmo sol, mesma blusa, mesmo instante.

nele que cabia tudo, que cabia a casa
que cabia um sopro,
que cabia a velocidade das vontades tão sonhadas e tão urgentes.

De tantas flores, de tantos cheiros-de-flores, de tanta dança-de-flores
As mesmas a balancear
a contrabandear sons e passos
Tínhamos o mesmo nascimento
o abrir de olhos similar
o bater de pés tamborilando a música preferida de hoje... os mesmos.

Elas queriam uma história para elas. Para pensar e deixar partir.
Um conto mesmo que breve, mas com conteúdo que se fizesse entendível (alguns dias queriam que fosse até aprovável, mas que bobagem!)
mareado
com bolhas de ar e cheiro de canela.

Começaram, então, pela casa. Ali onde iriam inventar histórias queriam
espaços vagos,
para que o vazio pudesse estar presente

esta era presença importante demais para ser deixada para depois.

Fazer espaço pro vazio ir chegando.

queriam as cores, que as fariam lembrar dos livros, que dariam ideias para cozinharem o prato do dia,
que as fariam ouvir o som que o vizinho tocava amornando a saudade,
que as levaria até a banca de revistas e ao moleque correndo atrás da bola escorregando pela rua,
ao barulho da latinha de alumínio do cego que se protegia da chuva que ainda não tinha chegado
Estavam felizes.

Tantas Anas a imaginarem e a colocarem a vida pra fazer.
Inquietas, não queriam saber de sofá.
Sossego...? Deixamos para o próximo outono.
Era chegada a hora de atravessar. Uma Ana de cada vez que fosse, mas firmes no leme.

A casa de Anas ficava no final daquela rua com uma moradia de cada cor,
com calçada curtinha

e com silêncio de passarinho.
Conheces?!

A casa das Anas cresce todo dia. Nasce, renasce e volta
Ela tem coração
e brinca de fazer estripulias.

Expande-se, expande-se, expande-se

A casa das Anas não cabe.
Não termina.

sábado, 23 de abril de 2011

Ecos teatralizados

Da peça "Quem não sabe mais quem é, o que é e onde está precisa se mexer", trazida ao Rio pela paulistana "Companhia São Jorge de variedades".
A apresentação foi sensacional.
No elenco: Mariana Senne, Patrícia Gifford e Marcelo Reis.
Este trecho, do escritor Heiner Muller, é dito na peça (escrita a partir de sua obra), com algumas modificações e o deixo aqui, pois como todo o restante da apresentação, pode gerar inquietações e movimentos:

"Eu sou Ofélia. Aquela que o rio não conservou.
A mulher na forca.
A mulher com as veias cortadas. A mulher com excesso de dose SOBRE OS LÁBIOS NEVE a mulher com a cabeça no fogão a gás.
Ontem deixei
de me matar.
Estou só com meus seios, minhas coxas, meu ventre.
Rebento os instrumentos do meu cativeiro -
a cadeira,
a mesa,
a cama. Destruo o campo de batalha que foi o meu lar.
Escancaro as portas para que o vento possa entrar e o grito do mundo.
Despedaço a janela.
Com as mãos sangrando rasgo as fotografias dos homens que amei e que se serviam de mim na cama, mesa, na cadeira, no chão.
Toco fogo na minha prisão. Atiro minhas roupas no fogo.
Exumo do meu peito o relógio que era o meu coração.
Vou para rua, vestida em meu sangue."

Hamlet Máquina, de Heiner Müller

VALE CANTAR OFÉLIA E NÃO SÓ LÊ-LA!!

sexta-feira, 11 de março de 2011

No dia do aniversário

Aquilo que nem meu é. Armadilha. Atrapalho. Não importa tanto. Resolvi ainda assim trazê-lo. Quero dar-lhe a ti.
Acho que meu amigo irá entender. Em tão pouco tempo tive vontade de dizer Cortázar a você

"Toco sua boca. Com o dedo toco o canto da sua boca. Vou desenhando-a como se saísse da minha mão".

Brindemos, então. Não se assuste. Por vezes, elas são assim. Existem por puro capricho ou nem existem e já nos fazem querer voar. Vamos jogar? Existirnãoexistir desistirpersisitir
RESISTIR
Não se canse. De dia, tudo ainda estará tão fora do lugar quanto assim deixamos. Trombaremos com elas nas mediações da sala e você se irritará. Nada de sossegos hoje, meu bem. Trocarei a lâmpada por uma música lenta rodando na vitrola. Não quero dormir e admito incongruências. E se eu te gritar da janela, vereis tú, escorregando de minha boca e peço-te que me atendas. Faria-me feliz por um intervalo de vida inteiro. Curtíssimo. Vou me vestir e prenderei os cabelos. Não muito. Algumas mechas vão ficar para depois. Quero te ver chegar amanhã e só. O barulho lá no quarto imita os sons lá de fora, da calçada, e você veio deitar-se aqui. Bem aqui. No aconchego desses olhos que não se cansam de mirar cada hesitação tua. Até meu sorriso. Seja bem-vindo. Encantada. É um prazer conhecer você.

terça-feira, 1 de março de 2011

Sonhador singular de nós



À Tadeu,
olhos carinhosos que não deixam minha máquina de sonhos parar.













No final de tarde ganhei um sonho.
Sonho sonhado em outra cabeça.
Fervilhado em outro coração.
Contraído em outro corpo.
E adornado com preces minhas também.
Meu irmão me deu um sonho de presente.
Isto é que é presente de alegrar.
Sempre me mantive esperta para saber como eram fabricados os sonhos. Neste dia entendi.
A narrativa era simples, ele me contara ao telefone:
“Tínhamos um caminhão, muitos livros, nossas companhias.
Eram teus,
os livros.
Chegavam a livraria. Nova morada deles”.
Depois de escrevê-los os perdemos mesmo. Os livros vão ganhando outras casas.
De janelas e portas bem abertas para que não esqueçam o quanto são provisórias suas estadas. Livros inquietos e que estão sempre a trocar de pouso.
Que desmancham.
Já era uma escritora existindo no sonho que meu irmão me presenteou.

Meu irmão fez me dar um pedaço de sonho.
Uma porçãozinha de história contada.
E por não dar-me um sonho completo,
inteiro
me entregou também a liberdade para sonhar junto
para interferir nele e criar sem maiores limitações.
Imaginei paredes em xadrez para o nosso sonho.
Com uma praça e um café acolhedores.
Dia de usar casacos vermelhos e chapéus,
mas, querendo sentir uma frestinha de frio também.
Os sorrisos eram um acontecimento à parte. Desconcertante felicidade.

Pois é.
Não é mais importante saber se também fora assim que sonhastes, querido.
Teu presente nos fez sonhar à quatro mãos.
Outras tantas virão colaborar com esta nossa tarefa de invenção.

Digo que este sonho virou lenda
e que meu irmão passou a ser o responsável por ensinar à minha família
como se faz sonhos andantes.
Aqueles que vão sendo compartilhados com muitos
e que ao serem destinados a ti, convocam, imediatamente, toda a sua força de imaginar
para que possas esculpir seus tracejados também.
Ou pensas que é só ganhar um sonho e, pronto?

Tornou-se prática constante na minha casa dar sonhos de presente.
Ao meu irmão coube inaugurá-la e fazê-la firme.
O mais curioso é que, no fim, já não se sabe de quem mais era o sonho
se dele
se meu.
Trabalhamos juntos nossos ofícios nesta arte onírica, afinal
Para quê mais seríamos irmãos, senão,
para sonharmos juntos e
darmos ao outro seus pedaçinhos de presente.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

vejo: "último romance" Los Hermanos

Eu venho te amando
(a frase não tem mesmo fim)
Percebi ao dobrar aquela esquina
quando sem ter nenhuma lembrança sua na carteira,
ou debaixo do chapéu,
no fundinho da caixa de costura

sem me lembrar de nada teu
vi passar o vento que mexe em seus cabelos aí onde agora estás
só sabia que era o vento porque ele brilhava muito
(seus cabelos estão assim agora: um tanto embaraçados, maiores que os de sempre e brilham
e fazem acender)

mas, que tropeço! que charada!
eu venho te amando... sem dar-me conta

e pensar que num dia como esse
sol, buzina, comércio, estações, conhecidos
eu, que de tanta certeza, me esqueci de voltar
fui tomada pela estripulia desse tal.

Parti para ignorânia.

Estavas aí o tempo todo... escondido, disfarçado,
não queria chegar nem puxar a cadeira e nem contar história.

Golpe baixo, viu.

Pra me vingar, banquei a sacana também.
No primeiro tempo de distração, já quando ias fechar os olhos ao descanso que querias passar

Soprei!
Soprei quase um tufão.

Se dos ventos veio, que dos ventos volte pra onde sabes morar
e pares de me atazanar.


Acordastes de sobressalto, imagino. Feito.
Não dizem que aqui se faz e aqui mesmo se paga? Então.

Traquinagens suas,
minha desforra, sei apenas de um dos resultados:

Desde este dia, não dobro mais esquinas
não abro janelas
nem subo em lugares com mais de uma pouca porção de andares e apelidei este dia do
"dia em que percebi que eu vento te amando".

sábado, 4 de dezembro de 2010


Na vida, encontrei-me com duas pessoas.

Um homem
e uma mulher.
Julio Cortázar e Marguerite Duras.

E dali,
nunca mais saí.

domingo, 28 de novembro de 2010

Incandescente

Acordei porque sonhei com sua voz.
Mas, como pude sonhá-la se dela sequer me lembro?
Sem registros, sem delongas. Tínhamos apenas nosso beijo.
Demorado. Feito de gesto brusco e irrepetível.
Por causa dele, não existia voz. Não deixamos espaço para que ela se desse.
Entre nós dois, nenhum vácuo.
Ponteiro de distância à zero, e por isso, como falar?
De que terreno brotaria voz ou som, se, egoisticamente, não queríamos nada por perto que não essa junção fulminante que fazia desmanchar-se qualquer verbo importante: ser, parecer, aprovar, continuar, convencer, ganhar, aprofundar.
“Não minto”, falo. Era mesmo sua voz. Desenfreada, solta e viva como se precisasse dizer tudo naquele “tempo-de-sonho”, pois, outra oportunidade seria impossível. Tinhas um sonho para falar, não mais que isso.
Querias que lhe resgatasse dali. Daquele meio turbulento onde outras intensidades concorriam com sua fala, que já aqui, tornou-se quase desesperada. Estavas apresentando-se e pedias que o chamasse. Pedias por um convite.
Era um convite.
Desculpe. Demorei em entender. Como poderia eu saber que eras tu quem falavas?

Num pano de fundo xadrez, conseguia ver-te. Como espectadora que também corria contra o relógio e que ganhará a melindrosa e derradeira oportunidade de escolher um toque que coubesse naquele instante. Lembro-me que estavas atrás de um vidro de dimensões impensáveis. Por isso falava tanto. Por isso, querias que conhecesse sua voz. Para não esquece-lá mais. Para não perdê-la num depois, que já sabíamos, então, que não viria. Não iríamos conseguir dali escapar.
“Seus cabelos”, respondi fechando meus olhos à espera de que o instante não demorasse tanto. Não querias mais ficar ali.
Só a aflição falava comigo.
Anteparo de vidro. Extensão irremediável e plácida. Deixava passar sua voz que chegava à mim num volume absurdo, pois quanto mais alto o escutava, mais tremia, mais à fundo meu corpo era atingido, mais fortemente sentia o tempo apertando minhas veias, fazendo-se senhor de nós e rindo... gargalhada pouco amorfa, posto que certeira.
Vacilaria novamente feito presa fácil. Pus a última carta nas mãos do inimigo. Xeque-mate.

Caberia ainda meu toque. Isto era parte do trato e não me furtaria em cobrá-la. Pensando ser insuportável, encarei-o sem titubear. Chance última de respirar. Salvar a mim e a ti. Salvar a pele que era nossa, a mesma que queimava quando solta e faminta esparramada em nosso jogo onde nada mais poderia penetrar que não nossa pulsante vontade. Gritante como sua voz teimosa e que não conheceu rouquidão nem complascência.
“Ao que me cabe, tempo, resta-me ainda, o toque”. Sei que és firme, resoluto, impassível por excelência, porém, já ouvi que jamais fugirias ante um bom combate.
Intempestivo era como este no qual nos encontrávamos demonstrava ser.
Ludibriar não tinha consistência para ti e sabíamos, juntos, que este era jogo infinito. Perene e poliforme era dele que nós fazíamos vivos. Inescapável jogar.

Fresco e leve. Deixei que a mão escorregasse por teus cabelos e dali: novamente nós. Sem fresta alguma. Casulo febril e doce. Pude vê-lo pelas mãos. Sorri. Os sentidos todos compareciam e não éramos o encontro de dois: tornamo-nos contágio. Puro contágio. Sem origem ou destino, sem quaisquer nomeação. Éramos para além de nós. Éramos nesse ir, nessa saída: irrefreável e transbordante.
Desculpe pela demora. Sabia que virias. Talvez lá, do centro da cena, ou da escada à minha esquerda. Do corredor de paredes descascadas.
Marcamos um encontro há tempo, lembra-se? No Tempo do sonho.
Lá pude ouvir sua voz, sem me preocupar em reconhecê-lá. Num lugar nenhum no qual estávamos mais vivos que nunca.
No vazio do quarto, acordo-te com um beijo molhado e delicado.
Nos despedimos ali.