sábado, 4 de dezembro de 2010


Na vida, encontrei-me com duas pessoas.

Um homem
e uma mulher.
Julio Cortázar e Marguerite Duras.

E dali,
nunca mais saí.

domingo, 28 de novembro de 2010

Incandescente

Acordei porque sonhei com sua voz.
Mas, como pude sonhá-la se dela sequer me lembro?
Sem registros, sem delongas. Tínhamos apenas nosso beijo.
Demorado. Feito de gesto brusco e irrepetível.
Por causa dele, não existia voz. Não deixamos espaço para que ela se desse.
Entre nós dois, nenhum vácuo.
Ponteiro de distância à zero, e por isso, como falar?
De que terreno brotaria voz ou som, se, egoisticamente, não queríamos nada por perto que não essa junção fulminante que fazia desmanchar-se qualquer verbo importante: ser, parecer, aprovar, continuar, convencer, ganhar, aprofundar.
“Não minto”, falo. Era mesmo sua voz. Desenfreada, solta e viva como se precisasse dizer tudo naquele “tempo-de-sonho”, pois, outra oportunidade seria impossível. Tinhas um sonho para falar, não mais que isso.
Querias que lhe resgatasse dali. Daquele meio turbulento onde outras intensidades concorriam com sua fala, que já aqui, tornou-se quase desesperada. Estavas apresentando-se e pedias que o chamasse. Pedias por um convite.
Era um convite.
Desculpe. Demorei em entender. Como poderia eu saber que eras tu quem falavas?

Num pano de fundo xadrez, conseguia ver-te. Como espectadora que também corria contra o relógio e que ganhará a melindrosa e derradeira oportunidade de escolher um toque que coubesse naquele instante. Lembro-me que estavas atrás de um vidro de dimensões impensáveis. Por isso falava tanto. Por isso, querias que conhecesse sua voz. Para não esquece-lá mais. Para não perdê-la num depois, que já sabíamos, então, que não viria. Não iríamos conseguir dali escapar.
“Seus cabelos”, respondi fechando meus olhos à espera de que o instante não demorasse tanto. Não querias mais ficar ali.
Só a aflição falava comigo.
Anteparo de vidro. Extensão irremediável e plácida. Deixava passar sua voz que chegava à mim num volume absurdo, pois quanto mais alto o escutava, mais tremia, mais à fundo meu corpo era atingido, mais fortemente sentia o tempo apertando minhas veias, fazendo-se senhor de nós e rindo... gargalhada pouco amorfa, posto que certeira.
Vacilaria novamente feito presa fácil. Pus a última carta nas mãos do inimigo. Xeque-mate.

Caberia ainda meu toque. Isto era parte do trato e não me furtaria em cobrá-la. Pensando ser insuportável, encarei-o sem titubear. Chance última de respirar. Salvar a mim e a ti. Salvar a pele que era nossa, a mesma que queimava quando solta e faminta esparramada em nosso jogo onde nada mais poderia penetrar que não nossa pulsante vontade. Gritante como sua voz teimosa e que não conheceu rouquidão nem complascência.
“Ao que me cabe, tempo, resta-me ainda, o toque”. Sei que és firme, resoluto, impassível por excelência, porém, já ouvi que jamais fugirias ante um bom combate.
Intempestivo era como este no qual nos encontrávamos demonstrava ser.
Ludibriar não tinha consistência para ti e sabíamos, juntos, que este era jogo infinito. Perene e poliforme era dele que nós fazíamos vivos. Inescapável jogar.

Fresco e leve. Deixei que a mão escorregasse por teus cabelos e dali: novamente nós. Sem fresta alguma. Casulo febril e doce. Pude vê-lo pelas mãos. Sorri. Os sentidos todos compareciam e não éramos o encontro de dois: tornamo-nos contágio. Puro contágio. Sem origem ou destino, sem quaisquer nomeação. Éramos para além de nós. Éramos nesse ir, nessa saída: irrefreável e transbordante.
Desculpe pela demora. Sabia que virias. Talvez lá, do centro da cena, ou da escada à minha esquerda. Do corredor de paredes descascadas.
Marcamos um encontro há tempo, lembra-se? No Tempo do sonho.
Lá pude ouvir sua voz, sem me preocupar em reconhecê-lá. Num lugar nenhum no qual estávamos mais vivos que nunca.
No vazio do quarto, acordo-te com um beijo molhado e delicado.
Nos despedimos ali.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Desdobrando-se

Este é mais um passo, mais um caminho.
Outra forma. Nova composição.

Do texto "Abuela" chega-se até a "Um exemplo de vida", escrito pelo jornalista e amigo Ronald Mansur para o jornal "A Gazeta".


Um exemplo de vida

26/07/2010 - 22h43 ( - )
Ronald Mansur

Nair Coelho dos Santos nos deixou, foi morar nas estrelas e de lá observa e faz os seus sábios comentários. De fala mansa e certeira, sempre colocava a sua posição, nunca um ponto final. Fazia de maneira a abrir um parágrafo a quem desejasse prosseguir a conversa, a vida. Assim era Nair Coelho dos Santos.

É fácil explicar, não sei se será de igual modo para os que estão lendo este texto: mas quem é esta mulher? Ela foi uma cachoeirense que conheci no finalzinho da década de 60. Quando a conheci, a sua casa era habitada por uma população fixa e original de dez pessoas, ela e cinco filhas e quatro filhos. Mas a população flutuante que também girava em torno dela era imensa, maior que a população original. Eram os filhos do coração. Sempre havia lugar, não para mais um, mas para todos que chegassem. Eu me incluo neste grupo de agregado, tenho a certeza de que era o décimo filho. Mas tenho consciência de que muitos e muitos se consideram o seu décimo filho ou filha. Disputa dura.

A casa de Nair era território livre e sagrado em Cachoeiro de Itapemirim. O grupo ligado a ela pelo sentimento de liberdade, fraternidade e solidariedade era maior que o seu clã familiar. Éramos invasores e ocupávamos um espaço dos filhos e filhas de sangue.

Quando os filhos começaram a deixar Cachoeiro com destino a Vitória, ela tomou o mesmo rumo. Imagino como deve ter sofrido ver o seu núcleo familiar dividido. Ela acompanhou o grupo que saiu, com a intuição de mãe a proteger filhos e filhas. Ela veio para a terra estranha. Uma nova jornada.

Vieram os netos, que também gravitaram em torno de Nair. Vieram os netos dos agregados. A ligação era tão grande que meus filhos sempre falam vovó Nair. Recebi de Kátia Coelho dos Santos, filha de Nair, um texto maravilhoso e comovente, da lavra de Poliana, sua sobrinha. Com alegria e emoção divido este espaço com Poliana, com os dois parágrafos que seguem: "Sabias como ninguém fazer sabedorias, e para nós era difícil entender de onde vinham. Se dos diversos livros que amavas, se do trabalho ao qual tanto se dedicou, se dos encontros que teve com esta família, destino de seus maiores e mais cuidadosos afetos. Se das mais diversas peripécias que os muitos que compartilhavam de sua casa colocavam em funcionamento. Muitos de sangue, é verdade, porém, outros muitos mais que em sua casa estavam porque dali algo nascia, se movimentava."

"Uma força, uma inquietação. Um vigor e curiosidade por tentar fazer da casa espaço que para muitos retringe-se apenas ao particular, ao que se justifica na privacidade e no segredo, lugar de crescimento, de pululação de sentimentos e pensamentos. De chamar os que precisassem ou quisessem a experimentar a mesa e a comida da casa de Dona Nair. Dali saiam todos bem alimentados. Dos pratos deliciosos da vovó e das conversas que iam de política à literatura, passando pela música, artes, futebol."

Aproveitando o final deste espaço, chamo Poliana para definir a vovó Nair: "De seu pequenino tamanho pouco ultrapassou, mas suas mãos e seu abraços... ah! eram feitos com a matéria prima mais ilimitada, mais dançante e sorridente." Não é preciso dizer mais nada sobre o exemplo de vida desta mulher.


***

Agradeço ao Mansur pelas letras tão carinhosas e pela parceria incondicional com estes "Coelhos do Santos".

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Abuela


Eu não estava lá, mas aposto 5 estrelas cadentes que minha vó nascera em dia de sol.
Numa manhã com cheiro de biscoito e com barulho de feira
e das panelas na cozinha que não nos permitiam ficar impassíveis aos encantos das gostosuras que somente seu coração, recheado de prazer e encantamento,sabia inventar.
De seu pequenino tamanho pouco ultrapassou, mas suas mãos e seu abraço...ah! estes eram feitos com a matéria prima mais ilimitada, mais dançante e sorridente.

Suas conversas e carinho eram, vovó, sua melhor culinária.

Sabias como ninguém fazer sabedorias,
e para nós era difícil entender de onde vinham.
Se dos diversos livros que amavas, se do trabalho ao qual tanto se dedicou, se dos encontros que teves com esta família,
destino de seus maiores e mais cuidadosos afetos.
Se das mais diversas peripécias que os muitos que compartilhavam de sua casa colocavam em funcionamento.
Muitos de sangue, é verdade, porém, outros muitos mais que em sua casa estavam porque dali algo nascia, se movimentava.
Uma força, uma inquietação.
Um vigor e curiosodade por tentar fazer da casa, espaço que para muitos retringe-se apenas ao particular, ao que se justifica na privacidade e no segredo, lugar de crescimento, de pululação de sentimentos e pensamentos.
De chamar os que precisassem ou quisessem à experimentar a mesa e a comida da casa de Dona Nair.
Dali saiam todos bem alimentados.
Dos pratos deliciosos da vovó e das conversas que iam de política à literatura, passando pela música, artes, futebol.

Talvez, vovó, a intensidade de tudo o que sabias contar e ensinar tenha também se fortalecido no aconchego dos momentos vividos com vovô Valdelino, dos quais sempre sentiras saudades, não é?!
Agora somos nós a sentirmos saudades em dobro.

Contudo, descobri uma forma muito agradável e simples de lembrar-me de vocês.
Além de passar em frente a casa na esquina da Rua Ana Machado e dar um golpe de vista rápido para a varanda da frente, onde minha mãe e tios foram criados por vocês
e deixar que as lembranças, mesmo aquelas mais distantes e apagadas, afirmem novamente os laços e os encantos de nossa "família de muitos", tenho outra forma de sentí-los perto: entrar numa biblioteca, respirar seus ares, olhar seus visitantes e buscar textos como os de Máximo Gorki ou de Josué de Castro.
Ali encontrarei vocês mais uma vez.
O brilho das palavras da vovó e o maravilhamento do pensar do vovô.

Trago por fim, um conto escrito pelo moçambicano Mia Couto, cujo o título leva o nome de "A Adivinha". Nele, a avó, que sempre indagava sua neta com charadas e inteligentes perguntas, renova esse exercício inquirindo sua netinha sobre qual seria o rio que não corre por entre duas margens?
A menina não sossega. Pensa, pensa, deita, levanta, dorme, brinca e pensa mais uma vez. Seus pais achavam que sua avó não era "boa companhia", afinal enchia a cabeça da criança de coisas sem importância e acabava fazendo-a esquecer dos deveres e responsabilidades da escola.
Sua avó termina doente e a menina termina
por achar a resposta da inquietante pergunta.
Corre, às pressas, até a casa da vovó, segura sua mão já quase sem força e diz:
"É o mar, vovó! É o mar!"

Obrigada, vovó Nair, por ensinar-me que existem mesmo rios de uma borda só.

Pela delicadeza, por seus cabelos branquinhos e pela certeza de que sempre valerá à pena amar, lutar e sonhar.

Um beijo, abuela.

Da neta
Poliana

sábado, 3 de abril de 2010

Apesar de... paixão.


Sempre desconfiei que possível seria somente se por paixão.
Se a ela me entregasse. Se a ela me reduzisse. Se com ela ousasse ser.
Paixão que insistia em despertar-se no crucial e sem sossego, escrever.
Pedia por todos os lugares dali. Não lhe bastava um só.
Só um sujeito. Só uma cara. Só uma sozinha solidão, só um organismo vivo, só aquela passagem, só o entorno de tudo o que se sabe palavra.
Insatisfeita e trêmula paixão, de minha escrita queria tudo.
Queria o verso, a prosa, o enigma, o fogo, as raízes e as mãos.
Se a ele me entregasse?
Talvez precissase me lavar, banhar-me de cores líquidas, para ouvir seu chamado confuso que me suspendia para além de mim.
Alguém para amparar a pressão dos olhos daquela paixão, depositados sobre as páginas que tentava desenhar. Um co autor, um leitor desavisado, uma janela aberta, um navio a partir? Um toque.
Perguntava-me, já quase cansada em ter-te por perto, de onde tinhas nascido e como viera parar ali, em mim?
Exigia-me o impossível, não vias?
A troca.
O verbo desfeito, os cabelos desarranjados, os laços rompidos, as indicações apagadas.
Tive, confesso, como os que morrem de medo de terminar, vontade de chorar. Havias pedido de mim, o mais caro artigo do qual dispunha.
Não, minha escrita, não.
Para onde a levarás? Se for nos lançar ao mar, paixão, qual garantia teremos, eu e ela, nós?
Perguntas circulares que também carregavam meu corpo por linhas circulares.
Perguntas que pararam de respirar.
Aquietaram-se num canto, feito bicho ferido, e logo se distraíram com outras conversas.
Meu coração palpitava por números, letras, sons, discursos entrecortados, sombras e paradas.
Perdi a cosnciência. Fui contaminada!
Na verdade, a paixão jamais tivera dado-me escolhas.
Esteve sempre ali, à espreita.
Encolhida em silêncio, por vezes, fazendo-se pouco notar, porém, incrustada em mim, em meus tecidos, desde do dia em que me vi gente.
Mesmo furiosa e intranquila, vivia para me causar. Arrebatar-me até que estivesse transformada em poesia:
"eu" de matéria prima poética.
Sim! Por paixão iria. Não defendo a escrita de ti. Nunca assim o fiz, mesmo quando temerosa e cheia de vontade de me esconder.
Sempre estive à margem de ti, paixão, e minha escrita por caminho similar seguiu.
Tú que impulsionas e cuida. Desfere golpes, ensina-me por dessaranjos. Exila-me do reino que marcha sempre para o rumo certo do sol
e cuida.
Já não mais me entendo... se começo, meio ou fim e não me considero apenas feita das mazelas da paixão que escreve.
Sou essa escrita apaixonada e cada vez menos, sou quem escreve. O que sou é este impulso, essa energia incalculável que se é, na medida do que nem nome tem. Sou sem querer para mim, sem aprisionar.
Sou exatamente no ponto onde minha escrita se desalinha.
(Daqui posso ver seu contorno se desmanchando, sem maiores nostalgias pelo que está supostamente se perdendo, posto que vibra ao chamamento de criar.)
Agora descanso.
Calmaria breve ou um entre atos.
Preciso novamente de água, de uma entrada totalmente exposta ao mar, ao cheiro do mar.
Não existo mais.
Somente minha escrita que não é centro, eixo, trono, mas que esparrama-se numa composição infinita.
Escrita disparada pela paixão e que não quer cessar.
Nada se assemelha a um produto pronto.
Uma paixão que põe seu acento nessa lida que é a escrita, neste processo, no trabalho de inventá-la, neste estado mágico que sofre a interferência do todo e do resto.
Escrita que quero, que desejo, que arrisco,
que cometo.
Que não se sabe, senão por paixão.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Quase um Lar



Tirei esta idéia hoje.
Agorinha!
Nem precisou de muito para me fazer acreditar no avesso de minhas metodologias.

Quase letra
Quase erro
Quase um tropeço para uma quase nova aprendizagem
Invasão quase devastadora
Pura, pura paixão com quase cheiro de flor.

Quase texto
Linguagem quase completa
Aquele minutinho antes do todo - aquele quase que não salva, não condena e não adverte porque é um quase feito só de tempo
Quase fora do relógio
Quase uma metáfora
Quase muito perto de ser-conceito, livre pro pensar.

Quase provocador que nem nome tem
Quase nada de identidades
Voz quase rouca e risada solta
Amizades por uma quase estrada de sol que pulsa
Fragilidades, movimentos, e isso tudo quase ao contrário
Quase poesia com motivo único de ter vindo:
convite para uma quase outra realidade
traçar com delicadeza (das que fazem as cortinas saírem do lugar e viajarem) dobras, curvas,
vontades de sentidos,
indiscretas inverdades inventivas,
Quebras de linguagem, ondas confusas entre dentro e entre fora
Quase nada falta
Veias de quase pura possibilidade.

Neste quase, as dicotomias estão em baixa,
a temporada anda fria para elas.
Aqui, quase uma interrogação
que encantada, não deseja mais transformar-se em afirmação
ou negação.
Longe de covardias, o quase é terreno fértil para criação.
É a melhor parte.
Pura força num processo imprevisto,
intempestivo durar.

Quase lugar de sossego
Amores na corda bamba da quase dor
Meu quase que nada tem de natural
Arrebatamento para além e aquém das certezas.

Fico sim!
Por quase todo o tempo
na companhia desta quase existência poética,
para sempre sentir esta quase necessidade de continuar a escrever,
a rodar com as letras, a "pregar peças" na língua,
a desdobrá-las num plano ainda quase desconhecido,
repleto de estrelas e peraltices.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Doces e Travessuras


A verdade era que já percebia a escrita como sendo feita de caramelo,
bala puxa-puxa
do tipo que se apresentava graciosa, flexível e suave nas vitrinas das lojas de doces, em alguma rua, bem antiga da cidade
ou nas panelas das casas com coração de vó.
Contudo, não podia esquecer que após ter experimentado alguns saltos e balanços intempestivos pelos mundos de escrita
aprendera que apesar de sua aparência brilhosa e convidativa, escrita nem sempre tinha gosto adocicado.
Nem sempre era tirada por gostosura de puro açúcar.
Pensava que se a escrita tivesse somente este paladar,
não demoraria tempos,
logo poderia causar aquela sensação enjoativa e estanque de quando deixamos de nos surpreender com os sabores, e de pronto,
já definimos conceitos e certezas para os tais.

O que mais a encantava nesta sua aventura de misturar escrita, caramelos, lojas de doce, balas que esticam e voltam,
tinha gosto de incerteza
de palavras maleáveis, mágicas dos sentidos,
como uma escrita que podemos mastigar, fazer mudar de forma, lançar de um canto para outro,
amassando-a e a desdobrando com o vigor semelhante aos daqueles que trabalham o alimento com paixão.
Não era motivo de medo nem preocupação, encontrar-se com a escrita nos dias em que ela lhe parecia cortante e fazia o corpo querer se encolher,
porque ali ela também crescia.
As reviravoltas que a escrita trazia nas tempestades de som desconhecido
atingiam léguas.
Iam dos pensamentos até os movimentos vitais
das janelas aos corredores mal iluminados
Trópicos de câncer, de capricórnio
no fundo de si,
Fundosuperfície num espaço único,
tumultuado e alegre por estar inventando um ser-escrita, agora com fronteiras tênues de homem que escreve e sofre escrita.
Por risos que escapam, transbordam
lá vai ele, artesanalmente, fazendo e sendo feito por agulhas que costuram escrita
e logo, vai se tornando tão mais homem,
tão mais doce
tão mais caramelo.


Foto: Eugène Atget
Boulangerie, 48 rue Descartes

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Entre sem bater


Esta noite acordei atravessada por poesia.
Nascida não sei bem de onde.
Mas, carecia de um dengo.
Coisa de amor.

Pegou-me em meio a um sonho apressado
e quase nem consegui dar-lhe a atenção merecida.

Hora cedo, hora tarde
essa dorminhoca apruma e salta pra longe dessa preguiça.

Quanta indelicadeza a minha, mas é que estava num ritmo amarelinho do sono,
tinha sol e depois barulho de chuva,
rodopios e língua de sogra.
Sobrou pouco espaço pras coisas daqui de fora.

Poesia de coração partido.
Parecia que tinha perdido o gosto e as fitas coloridas.
Foi ficando magrinha, fininha, porque estava desaprendendo as cantigas e as surpresas.
De serelepe mesmo só restou a voz afobada que usou para salpicar essa nossa conversinha-de-porta-da-manhã.
Engraçado! Sempre pensei que poesia era vai e volta,
que corria mais que menino atrás de bola e que nem tinha tempo em branco para amarrar tristeza.
Sem perceber já estava eu sobrecarregando a tal com pilhas de incumbências e velocidades mil.

Certo era, que minha poesia estava amadurecendo, criando viço novo,
borboleteando navegações imprevisíveis
e tudo o que eu queria era dizer:
Deixe disso, pequena! Vou logo te abraçar
e verás que coração quebrado a gente remenda é com fio de ternura
escolhendo ainda, se necessário, um botão de tímida beleza pra enfeitar este semblante de quem gosta dos quintais.

Tú sabes, poesia repentina, que nascestes de pé de pimenteira
com raminhos de cor verde-alecrim
e que podes deslizar por aí sem planos feitos.
És amiga da lua e da vida, e quando fores sem retorno breve
elas me contarão suas fabulices e encantos.
Até que pules novamente sobre meu cobertor e em tom de charada, diga:
Adivinhas quem aqui está?!
Sem abrir os olhos, meu despertar vai responder
que a poesia-pivete voltou e que já nem se lembra mais dos caquinhos de outrora.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Sutilezas de ti que ainda nem sei


(Prelúdio)

Enfim, nos encontramos com a aconchegante experiência de um impessoal.
Era uma sensação que arrebatava todas as memórias que guardávamos até ali e que estavam apenas esperando o momento certo para serem utilizadas de novo.
Experiência impessoal que resistia a essa nossa mania de criarmos uma "dispensa de sentimentos". Quase como ervilhas em conserva.
Ficamos à espreita, feito caçador de ouvido atento, e ao primeiro sinal da chegada de um acontecimento da espécie novus criativus, bravamente lançamos mão de nosso sentimento-ervilha e aniquilamos a inconveniente caça.
Assim vamos arquivando os sentimentos, colocando-os em pastas ordenadas pelo alfabeto e dependendo do que a situação lá fora peça, já sabemos o que usar.
A partir do momento em que deixamos as fôrmas, os deveres e as identidades se apagando, respiramos outros ares. Tocamos novas águas.
Nos enfeitamos para a vida.


Em qual sentido começas a desabotoar a camisa depois de feito o dia ensolarado?
Se esticas bem o corpo na cama pro sonho ter mais espaço de caminhar?
Será que batizas as ruas de onde mora e por onde passas à noite com algumas de suas músicas preferidas? (Cada rua tem mesmo uma canção!)
Consegues saber qual pássaro canta apenas ouvindo-o de sua janela?
Passados alguns dias, pensas nos motivos de sentarmos sempre no mesmo lugar na mesa de café?
Ao atravessar aquela passarela comprida no jardim do centro da cidade preferes ir andando de olhos fechados e depois, os abrir de supetão só para ver o que mudou?
Tens medo de dizer que está com medo por não saber se vamos continuar sorrindo assim até tempos mais tarde?
Sem perceber, acabas sempre lendo o jornal ou a revista de trás pra frente e ao chegar na capa, olha pro lado discretamente para ver se ninguém em volta reparou seu hábito deveras desnorteado?
Sentas no ônibus e se perde em pensamentos tentando adivinhar como se chama, onde trabalha e o que a pessoa que viaja ao seu lado pede como desejo a uma estrela que vê nascendo no céu?
Quando chegas em casa e encontras na geladeira seu doce preferido, se detém durante 15 segundos para olhar e tentar descobrir se é mesmo verdade que ele esteja ali e logo após, com o coração balançando, agradece aos Deuses pela invenção do chocolate?
Se algum dos dedos de seu pé tem um formato esquisito, diferente dos outros?

Essa sou eu. Tateando seu espaço, sem medo algum de me perder,
querendo conhecer-te em sutilezas
para não mais saber quem és.

Ainda nem sei...

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

De onde viemos?

No princípio era mesmo um Sorriso.
Esta pequena proeza, quase sempre desavergonhada, sabia como poucos tumultuar o mundo recém-inaugurado,

e ele – como a maioria dos gigantes – esbravejava e ardia numa raiva emburrada daquele tal Sorriso que parecia por nada se responsabilizar.

Os sorrisos jamais diziam não serem espoletas e a despreocupação que carregavam consigo vinha da sensação brusca que lhes avisava que tinham sido criados juntinho com o mundo. Sem intervalos entre ambos.

Mundosorriso para além dos hífens.

Por isso, sorrisos não se irritavam com a rabugentice do mundo, afinal eles sabiam que eram feitos da mesma matéria prima,
de óleo colorido
de bolhas de sabão
de feixes de alegria

Sorrisos pegavam o mundo de surpresa e se enrolavam em seu pescoço, feito cachecol, para que de propósito, os homens - futuros habitantes dali - quando chegassem, não mais pudessem reconhecer quem era o que e como,
ou onde começava mundo e chegava sorriso.

E mesmo com a cara feia que o mundo insistia revelar em certas circunstâncias, os sorrisos provocavam belezas neste teimoso.
Ali se dava a sublime criação! Ali se dava uma imensa explosão e...
Aqui estamos!!
Filhos de sorrisos e mundos,
dessa alquimia ininteligível e farta de surpresas e brilhos.